Milhões de pessoas escolhem os cruzeiros justamente pela combinação de isolamento e conforto. Mas o que começa como um merecido descanso do mundo real pode se complicar caso você fique doente ou sofra um acidente a bordo.
Quebrar a perna a centenas de quilômetros do hospital mais próximo ou sofrer um infarto pode fazer você repensar se realmente quer estar tão longe da terra firme.
Claro, todo navio de cruzeiro tem um centro médico — mas o que ele oferece? São médicos clínicos gerais ou mais parecidos com os de uma emergência? E se o pior acontecer — o que acontece se um passageiro morrer a bordo?
Leia mais:
-
Focado em vinhos, cruzeiro fluvial para brasileiros zarpa na França em 2025
-
Cruzeiro fluvial só para mulheres zarpa em 2025 na França
-
Novo cruzeiro de luxo pela Amazônia peruana deve chegar em 2025
Dr. Aleksandar Durovic, que trabalha como médico em cruzeiros há 20 anos, conta que a vida de um médico no mar é bem diferente daquela em terra firme.
“Assistindo ‘The Love Boat’, parece que é só jantar e tomar drinks com os passageiros, mas não é bem assim”, explica.
“É um trabalho cheio de estresse e responsabilidade. A parte médica pode ser bastante exigente. Na maioria dos cruzeiros grandes, prestamos serviços de emergência, como numa UTI, mas também somos clínicos gerais para a tripulação e cuidamos de necessidades médicas crônicas.”
Amy White, diretora de operações médicas da Vikand, empresa que presta serviços médicos a mais de 150 navios de 33 linhas de cruzeiro, explica que os profissionais são selecionados por terem pelo menos três anos de experiência em medicina de emergência.
“A razão disso é que podemos enfrentar todos os tipos de emergências médicas a bordo”, afirma. “É preciso pessoal altamente treinado para lidar com isso. Muitos navios têm um único médico, então ele é o responsável, não há ninguém para substituir a não ser a nossa equipe em terra.”
Outro aspecto importante, segundo White, é a habilidade em lidar com as pessoas. “Nos navios, você precisa ter hospitalidade — os passageiros sempre têm razão”, diz ela.
Durovic trabalhou 13 anos em Montenegro antes de começar no setor de cruzeiros. Passou dois anos com a MSC e 17 com a Carnival. Atualmente, ele ocupa um cargo único na indústria: é o único médico a bordo do Villa Vie Odyssey, um navio que está realizando uma viagem de três anos ao redor do mundo.
White, por sua vez, começou sua carreira como enfermeira em departamentos de emergência na África do Sul e foi atraída para os cruzeiros por dois colegas de trabalho que sempre falavam sobre o assunto.
Em 2012, ela entrou para a Royal Caribbean como enfermeira, depois passou para a Viking, onde foi promovida a enfermeira da frota, até chegar à Vikand como gerente de operações médicas.
Independentemente da duração do cruzeiro, a estrutura geralmente é a mesma, seguindo as diretrizes do American College of Emergency Physicians (ACEP).
As linhas de cruzeiro que fazem parte da CLIA (Cruise Lines International Association) devem ter pelo menos um profissional médico disponível 24 horas por dia, sete dias por semana, além de duas salas médicas, sendo uma delas equipada para cuidados intensivos. Também é exigido que o navio tenha equipamentos para monitoramento dos sinais vitais.
Em muitos navios grandes, há pelo menos um outro médico, além de uma pequena equipe de enfermeiros, embora isso dependa da política da empresa e não seja uma exigência legal.
White compara isso a uma “unidade de pronto atendimento ou emergência de uma pequena comunidade — temos uma área de tratamento, uma ou duas UTIs com ventilador, capacidade de monitoramento cardíaco e desfibrilador.”
A partir de 2026, os navios membros da CLIA também serão obrigados a ter equipamentos de ultrassom a bordo.
Os grandes cruzeiros também contam com um necrotério para quando o pior acontece.
A equipe médica a bordo é apoiada por profissionais em terra, incluindo médicos com vasta experiência em medicina de emergência. “As grandes empresas — como Carnival, Royal Caribbean, MSC — têm um departamento médico que dá total suporte”, diz Durovic.
Companhias menores, como a Villa Vie, trabalham com prestadores externos para garantir o mesmo nível de serviço. A Vikand é uma dessas empresas, fornecendo serviços médicos para mais de 150 navios em 33 linhas de cruzeiro, com equipe a bordo e suporte logístico em terra.
E há ainda o capitão do navio, que é o responsável por todas as pessoas a bordo. Ele se envolve na logística caso um paciente precise ser desembarcado ou, em caso de falecimento a bordo.
Mas, fora isso, a equipe médica está sozinha no mar — sem ninguém mais para ajudar.
Como é o pronto-socorro de um navio?
Para Durovic, trabalhar em um navio de cruzeiro é uma combinação excelente de medicina de emergência, cheia de adrenalina, e prática médica geral, onde os médicos podem criar um vínculo com seus pacientes.
Embora a maioria das interações com os passageiros seja de natureza emergencial, quando se trata da tripulação, os médicos a bordo assumem o papel de clínicos gerais, ajudando com condições crônicas, criando relações e até supervisionando a saúde mental. Isso também acontece no Villa Vie, onde alguns passageiros planejam permanecer a bordo enquanto conseguirem.
No entanto, a grande maioria dos casos que os médicos de cruzeiro atendem são emergências.
“Problemas respiratórios são os mais comuns, mas qualquer coisa pode acontecer”, diz Durovic. “Infartos, insuficiência cardíaca, parada cardíaca. Acidentes vasculares cerebrais, lesões, fraturas, ferimentos na coluna e na cabeça. É parecido com qualquer emergência médica ao redor do mundo, e alguns navios podem ser muito movimentados.”
Ele conta que em navios grandes, os médicos lidam com cerca de uma morte por cruzeiro, enquanto White acredita que isso aconteça pelo menos uma vez a cada três meses. “É bastante comum — mais comum em linhas com passageiros mais idosos”, explica.
White observa que, enquanto a medicina de emergência em terra envolve muitos acidentes, no navio o quadro é diferente. “Não é necessariamente trauma — vimos muitos pacientes com doenças cardíacas crônicas em falência cardíaca aguda”, diz ela, lembrando de como teve que colocar pacientes em ventiladores durante seu tempo a bordo.
Outro problema comum que enfrentam é a gastroenterite e doenças respiratórias — não são grandes preocupações em terra, mas é crucial controlá-las a bordo. “Se você chega na emergência com diarreia, a gente te coloca no soro e te manda para casa. No navio, você fica isolado por 48 horas. Essas são as coisas que não ensinam na escola de enfermagem”, diz White.
Para Durovic, suas primeiras experiências com a MSC, quando ainda era uma empresa jovem com apenas alguns navios, lhe mostraram como os médicos de navios podem ser criativos e flexíveis.
“Vi a amplitude da medicina que você pode fazer no navio, com o suporte da terra”, diz ele. “Não há tomografias, você está no meio do oceano e precisa estabilizar o paciente o suficiente para alcançar o próximo porto, ou transferir para um helicóptero e levá-lo para uma unidade médica em terra.”
Então, o que acontece se você sofrer um acidente ou ficar doente a bordo — e suas chances de recuperação são as mesmas que em terra?
Primeiramente, espera-se que você tenha contratado um seguro de viagem — porque o atendimento médico em navios de cruzeiro é caro. Ao contratar o seguro, verifique se ele cobre especificamente cruzeiros, o que geralmente custa um pouco mais, e se cobre todos os países onde o navio fará paradas.
“A probabilidade de adoecer durante um cruzeiro é baixa, mas quando você viaja — de avião ou terra — sempre existe a chance de isso acontecer”, diz Adam Coulter, editor executivo do Cruise Critic, que só precisou usar uma instalação médica a bordo uma vez — para tratar uma queimadura de sol em um membro da família.
Independente do horário, é possível pedir assistência — os navios são obrigados por lei a ter ao menos um membro da equipe médica disponível 24/7. Se você puder, irá até o centro médico, geralmente no convés inferior.
Caso não consiga se mover, a equipe (geralmente as enfermeiras, segundo White) pode ir até seu quarto e ajudá-lo a ser transferido para baixo — membros da equipe de limpeza em cada navio também são treinados para transporte de emergência e resposta a RCP, levando pacientes em pranchas ou macas para os convés inferiores.
Você pode ser atendido imediatamente pelo médico — ou a enfermeira pode agendar a consulta, muitas vezes realizando exames de sangue para que os resultados fiquem prontos quando o médico for atendê-lo.
Sim, exames de sangue. Embora os centros médicos dos navios possam ser pequenos, eles conseguem realizar uma série de testes, de exames de sangue a raios-X, e podem fazer pequenas cirurgias, colocar gessos em ossos quebrados, inserir cateteres e até intubar e colocar pacientes em ventiladores. Eles conseguem reexpandir pulmões colapsados e estabilizar infartos.
Podem até fazer transfusões de sangue, pedindo doadores voluntários entre os passageiros através dos alto-falantes. “Você ficaria surpreso com o tipo de coisa que conseguimos fazer”, diz Durovic.
No entanto, cirurgias complexas não são possíveis. Pacientes que necessitem desse tipo de procedimento precisarão ser transferidos para uma unidade médica em terra.
E, mesmo para cirurgias relativamente simples, a logística pode ser um desafio. No caso de uma apendicite rompida, por exemplo, os médicos podem administrar antibióticos e estabilizar o paciente com analgésicos, para então evacuá-lo para o centro médico mais próximo para um exame de tomografia e cirurgia.
Mas levar pacientes para terra exige um planejamento. As equipes médicas em terra auxiliam nesse processo, diz Durovic. “Eles trabalham com você para encontrar a melhor rota, coordenam com a equipe de navegação para ver onde o navio pode desviar e as condições climáticas — um helicóptero não pode voar se houver poeira ou vento forte.”
O capitão tem a última palavra sobre a logística, em contato com a guarda costeira mais próxima. Se o navio estiver no mar, dependendo da situação (tanto do paciente quanto do navio), ele pode desviar a rota para desembarcar o paciente de barco ou helicóptero, caso o tempo seja um fator crucial. É aqui que o seguro de viagem se torna fundamental — porque o paciente será responsável pela conta.
“Eu não consigo explicar quantas pessoas que precisam de evacuação aérea não têm seguro médico”, diz White. “É muito importante ter — depende de onde você está, mas o custo pode chegar a até US$ 50 mil (R$ 301 mil)”.
Embora os passageiros possam recusar, ela avisa: “Eles precisam entender quais são os riscos se não conseguirmos tirá-lo do navio.”
Infartos no mar
A parada cardíaca é um dos incidentes mais comuns que as equipes médicas lidam a bordo, mas, embora uma insuficiência cardíaca no mar pareça um desastre iminente, muitas vezes eles conseguem salvar vidas.
As equipes não conseguem realizar um angiograma a bordo — mas nem todos os hospitais conseguem fazer isso, observa White. O que eles podem fazer é administrar trombolíticos — medicamentos que dissolvem um coágulo no caso de um infarto ou acidente vascular cerebral (AVC).
“Podemos mitigar qualquer dano adicional” antes de levar os pacientes para cuidados em terra, caso necessário, afirma ela. O mesmo vale para um AVC ou hemorragias.
Até acidentes e lesões mais simples podem ser tratados a bordo — as equipes podem fazer radiografias, colocar talas, estabilizar fraturas e até aplicar gesso. “Se for uma fratura de fêmur, temos uma tala de tração — podemos posicioná-lo corretamente e enviá-lo para o próximo porto disponível. O mesmo acontece com fraturas de quadril”, diz White.
Morte a bordo
Claro, às vezes o impensável acontece e um passageiro morre. Muitos mitos urbanos circulam — supostamente, um grande aumento no número de sobremesas de sorvete no cardápio significa que alguém morreu e teve o corpo guardado no freezer.
Chocantemente, isso realmente acontecia até cerca de 40 anos atrás, diz White. “Antes de terem necrotérios, colocavam os corpos no congelador de sorvete.”
Hoje, no entanto, a maioria dos navios tem um necrotério, com exceção dos navios de expedição, que raramente têm espaço para isso. “Às vezes, o corpo é colocado do lado de fora, quando você não tem terra por três dias ou a possibilidade de um helicóptero”, explica ela.
Atualmente, diz Durovic, existem procedimentos rigorosos em relação às mortes de passageiros.
A equipe médica deve informar imediatamente o capitão e também a equipe médica em terra. Eles devem dar banho no corpo e notificar as autoridades em terra. Nos EUA, isso significa a guarda costeira e os Centros de Controle e Prevenção de Doenças, explica Durovic.
“É o que decide o que fazer. Às vezes, médicos legistas vêm a bordo e levam o corpo para uma autópsia. Depende de caso para caso.” A segurança ao redor do corpo é aumentada enquanto ele está no necrotério a bordo.
White acrescenta que, geralmente, a polícia embarca no navio no próximo porto para registrar o caso e, às vezes, entrevistar o médico. “Mas nunca estive em um navio onde houve suspeita”, diz ela.
Normalmente, os diretores funerários locais retiram o corpo no porto, já que a maioria das autoridades não permite que os navios partam com um corpo a bordo. A única exceção, diz ela, seria um cruzeiro de retorno dos EUA para o México, onde eles poderiam ser autorizados a partir do México para levar o corpo de um cidadão americano de volta aos Estados Unidos.
Mas antes de tudo isso, diz White, há um momento de silêncio. “Obviamente, o médico pronuncia o óbito, mas para a maioria das equipes médicas, a pessoa recebe respeito. Há um momento de silêncio antes de preparar o corpo.”
Se a pessoa tiver sofrido um acidente, eles devem manter todos os dispositivos médicos usados no paciente como testemunho dos esforços para salvar a vida. Se, como costuma acontecer, a morte for natural, o corpo é levado para o necrotério.
“Há muita administração, e também conversamos com a família se ela não estiver [a bordo]”, diz White. “A equipe de relações com os hóspedes cuida bem da família, organizando voos ou oferecendo apoio psicológico, caso queiram permanecer a bordo. E, se algum membro da tripulação precisar de apoio psicológico — porque às vezes é a tripulação que morre — também oferecemos suporte para a saúde mental da tripulação.”
Embora sua mente possa automaticamente ir para um cenário estilo Hollywood, em que um passageiro morre de uma doença contagiosa, Durovic afirma que, em seus 20 anos de carreira, isso nunca aconteceu (embora tenha atendido vários pacientes em estado crítico com Covid desde o início da pandemia). Todas as mortes que ele tratou foram de causas naturais.
“Não é uma sensação agradável para o navio todo”, diz ele sobre uma morte a bordo. “Os navios devem ser lugares divertidos, para as pessoas aproveitarem as férias. Qualquer evento como esse é realmente estressante para todos — mas pelo menos nós [médicos] temos treinamento.”
Lidar com uma parada cardíaca, afirma, é o evento mais estressante para ele e sua equipe. “Às vezes conseguimos, às vezes não”, diz ele sobre a reanimação cardíaca (RCP).
White nunca se esqueceu de uma de suas perdas a bordo. Uma vez, ela teve que lidar com um homem que estava em sua viagem de 40 anos de casamento quando sofreu uma parada cardíaca.
“Tudo o que ele queria era ver o Canal do Panamá, e nós já tínhamos passado por ele no dia anterior”, diz ela, a emoção ainda visível em sua voz. “Faltavam poucos minutos para a véspera de Ano Novo. Nós o reanimamos, mas não conseguimos trazê-lo de volta.”
Cuidando da tripulação: dermatite e diabetes
Embora os incidentes com passageiros possam ser as tarefas mais dramáticas para um médico de cruzeiro, o que também é igualmente importante é a prática médica geral para a tripulação, desde o suporte a longo prazo para doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, até problemas agudos.
“Recebemos muitas equipes da cozinha com erupções cutâneas devido aos produtos químicos que usam para limpar, e eles estão limpando o tempo todo”, diz White.
Durovic afirma que a tripulação também pode receber ajuda psicológica online, bem como avaliação nos portos de chamada.
“Estar no mar é muito solitário – você perde muitas coisas”, diz White. “Minha mãe ficou muito doente e levei três dias para chegar em casa. Você está no mar, não há nada que você possa fazer. Eu cheguei até ela — mas muitos não conseguem.”
Ela diz que formar uma boa equipe é fundamental: “Nos navios, você aprende muito mais do que apenas medicina.” E as equipes costumam se tornar muito próximas do restante da tripulação. “As festas da equipe médica são as melhores”, diz ela. “Você coloca coisas em seringas e se fantasia de enfermeira.”
O ritmo acelerado e a distância de amigos e família não são para todos, mas Durovic não tem pressa de abandonar o navio.
“As pessoas dizem que é hora de voltar para casa, e eu eventualmente vou, mas aprendo muito sobre o que as pessoas estão fazendo ao redor do mundo”, diz ele. “Sempre há algo para levar consigo.”
Seus pacientes, em sua atual viagem de três anos, provavelmente esperam que ele termine a jornada até o fim de sua própria odisseia.
Aviões das viagens mais longas do mundo recebem reforma de R$ 4,7 bi
The post De infarto a morte a bordo: como é a rotina de um médico de cruzeiro? appeared first on CNN Brasil V&G.